Ao negar o fármaco Tirzepatida, o TJSP sinaliza uma guinada que pode alterar o rumo das ações contra planos de saúde em todo o país
Maristela Basso
A recente decisão da 19ª Vara Cível do Foro Central de São Paulo, que negou o fornecimento da Tirzepatida a uma paciente com obesidade mórbida e diversas comorbidades, pode representar um divisor de águas no tratamento judicial das demandas de saúde suplementar. Em um contexto de rápida expansão de terapias metabólicas inovadoras, o caso revela um novo rigor na interpretação das obrigações das operadoras e pode influenciar a orientação dos tribunais paulistas e nacionais ao longo de 2025.
A sentença julgou improcedente o pedido da autora ao reconhecer que o medicamento, aplicado em ambiente domiciliar, está excluído da cobertura obrigatória dos planos, nos termos da Lei nº 9.656/1998 e da RN 465/2021 da ANS. Como a Tirzepatida não é antineoplásico, não integra o rol da ANS e não se enquadra nas hipóteses legais de excepcionalidade, o juiz concluiu que não há base normativa para impor o custeio. A fundamentação acompanha a virada jurisprudencial promovida pelo STJ, que reafirmou o caráter taxativo mitigado do rol, limitando a atuação judicial àquilo que está expressamente previsto pela agência reguladora ou que satisfaça critérios técnicos rígidos — o que não ocorre no caso.
Um dos trechos mais significativos da decisão diz respeito ao papel da prescrição médica. O juízo reconhece sua importância clínica, mas afirma que ela não tem força normativa para impor coberturas não previstas em contrato ou em lei. Trata-se de uma ruptura com a tradição protetiva do TJSP, que por décadas relativizou exclusões contratuais com base na indicação médica e em princípios como dignidade da pessoa humana, boa-fé objetiva e vulnerabilidade do consumidor. A sentença coloca um freio nessa expansão judicial, reforçando que a indicação clínica não pode substituir a regulação técnica nem desestabilizar o equilíbrio atuarial dos planos.
Outro elemento relevante é a recusa da prova pericial e o julgamento antecipado do mérito. O juiz entendeu que os documentos já eram suficientes para a solução da causa, evitando uma instrução que prolongaria o litígio sem utilidade prática. Essa racionalização processual, cada vez mais frequente, representa um esforço de dar eficiência à judicialização da saúde, tratando-a como um problema jurídico antes de ser um problema técnico.
Mas o impacto da decisão vai além do caso individual. O litígio envolve uma paciente em situação clínica grave, para quem terapias metabólicas modernas — como a Tirzepatida — podem representar redução significativa de risco e melhora expressiva de qualidade de vida. Ao mesmo tempo, o rol da ANS ainda não incorporou grande parte dessas tecnologias, criando um descompasso entre o avanço científico e a velocidade regulatória. Esse hiato é terreno fértil para a judicialização, e a sentença mostra que o Judiciário começa a delimitar seus próprios limites de intervenção.
O caso revela, portanto, um conflito que definirá os próximos anos da saúde suplementar: o equilíbrio entre proteger o consumidor e preservar a sustentabilidade econômico-contratual do sistema. Se, por um lado, a decisão reforça a previsibilidade regulatória e impede que o Judiciário atue como legislador positivo, por outro, evidencia a vulnerabilidade de pacientes que dependem de terapias inovadoras ainda não avaliadas pela ANS.
É possível que 2025 seja marcado por esse tensionamento: de um lado, tribunais mais alinhados ao STJ, restringindo a ampliação judicial das coberturas; de outro, um aumento da pressão social e científica para que a regulação acompanhe a velocidade da inovação farmacológica. A sentença analisada, nesse sentido, não é apenas mais um capítulo da judicialização da saúde — é um indício claro de que o Judiciário brasileiro pode estar ingressando em uma nova fase, mais contida, mais técnica e mais pautada pelo marco regulatório.
Resta saber se a ANS, os legisladores e os próprios tribunais conseguirão responder ao desafio de equilibrar sustentabilidade e direito à saúde diante de terapias cada vez mais disruptivas. A decisão da 19ª Vara Cível é um sinal dessa mudança — e um convite para que a discussão seja enfrentada com seriedade, técnica e senso de urgência.
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